Património e Cultura Nº8 1982 ano 2 Dezembro Revista da associação para a defesa e investigação do património cultural e natural (adipacna) VRSA. Páginas 13 e 14
Em Faro, o exotismo da vivenda marília por Elídia Ribeiro e Maria da Graça da Silva Lobo.
Este baldaquino é sustido por uma coluna e rodeado da balaustrada em pedra. Esta, aparece também nos dois terraços laterais. O terraço da área de serviço, que dá para a Rua Garrett é também sustido por colunas, três colunas muito simples, aproximadas das colunas Toscanas. Existe neste terraço uma pequena fonte ladeada de bancos decorados com pedaços de porcelana de vidro e conchas aglutinados numa espécie de "patch-work”. Encontramos o mesmo trabalho na Fonte da Pipa e viemos a concluir terem ambos sido da autoria do já referido “Espanhol”.
- Um pouco de história
Existe em Faro, na rua Lethes, fazendo esquina com a rua almeida Garrett, uma casa com aspecto algo insólito pela profusão de elementos decorativos. Esta moradia, cujo nome é vivenda Marília, pertence a Joaquim Rita da Palma, advogado reformado, sendo habitado neste momento por sua filha Dona Marília. O nome deve-se ao facto de existirem várias Marílias nesta família.
Procurámos o dr. Rita Da Palma, que nos informou tê-la mandado construir em 1930, em terreno que até aí era zona de cultura agrícola. Pretendia que fosse de um estilo simples e sóbrio, o que estaria de acordo com a sua maneira de ser e a sua origem modesta, que nunca procurou encobrir.
Pelo contrário sua mulher, descendente de uma família de riqueza recente, queria que a casa exibisse o seu poder e “gosto” perante e elite da cidade e assim não contentara com uma casa rés do chão. Vai contactar um empreiteiro recém vindo de Marrocos, de nome Guilherme, que estava em voga na época, prestigiado pela sua permanecia no exterior, ambos irão ser autores de uma casa que não correspondia de maneira nenhuma ao projecto original, feito por Jaime Ruivo, então funcionário de obras publicas na Câmara Municipal de Faro.
A construção não teve assim plano prévio e foi feita ao sabor do improviso, ligada aos desejos da impulsionadora da obra, a esposa do advogado. Os dois medalhões que surge no exterior terão sido mesmo, a tentativa de esta senhora se retratar e assim permanecer no tempo.
Colaboraram na construção um estucador oriundo do minho, de nome Vietas e o mestre Miguel, mais conhecido por Espanhol, que trabalhou a pedra. As pinturas nas paredes e tectos estiveram a cargo do amigo do casal, professor Pina, que leccionava na escola industrial e comercial de Faro.
A moradia demorou dois anos a construir e foi bem mais onerosa que a verba inicialmente prevista para o primeiro projecto; alias, a licença de construção foi tirada para a casa desenhada neste projecto e este perdeu-se ao longo dos tempos.
A obra que o proprietário designou como "fruto da intuição", terá custado cerca de 300 contos, o que na altura significava uma pequena fortuna para as posses do advogado que se viu obrigado a recorrer a empréstimos, já que a quantia de dispunha e previra para a obra, não ultrapassava os 180 contos.
- Os exteriores
O material utilizado no corpo global da construção é pedra e tijolo rebocado e posteriormente colorido. Os pormenores decorativos são em gesso.
A cobertura da casa é uma placa rodeada de uma platibanda, como era costume na época e, para dar um ar mais imponente, este era decorado com partes em estuque que pretendiam imitar mármore, características de uma época em que se lutava já com a carestia e a falta de materiais e se procurava arranjar substitutos acessíveis. Para além destes existiam outros ornatos, que tornavam a platibanda um dos elementos mais sugestivos da fachada.
Deduzimos ao observar esta casa, pela diferença existente entre o andar superior e o andar inferior, que à medida que a construção ia avançado, novos elementos se iam acrescentado. De facto, a parte inferior é de um estilo relativamente simples, limitando-se a um friso de margaridas em gesso, painéis em estuque e janelas rectilíneas. As portas em Ferro forjado e madeira são também em estilo vulgar que não corresponde ao andar superior. Neste, pelo contrário, foi usada toda a imaginação numa amálgama de estilos, por vezes divergentes. Temos o caso das janelas rasgadas, emolduradas em cantaria, sendo o topo semi-circular à excepção da janela central cujo cume faz lembrar um frontão neo-clássico. As varandas são protegidas por gradeamento em ferro forjado, sendo a varanda central mais saliente que as outras. Acima das janelas podem-se ver pretensos semi-capitéis jónicos que sustentam uma plataforma proeminente na platibanda, como que a definir espaços. Aí encontram-se grinaldas rebuscadas e, enriquecendo ainda mais o conjunto, existem duas espécies de frontões (um de cada lado), no centro dos quais se destacam dois medalhões representado, como já se disse, a tão falada proprietária.
Um facto bastante curioso é que a grande maioria dos componentes denotam uma tentativa de simetria, que acaba por ser contrariada pelo baldaquino. Este destaca-se perfeitamente do edifício, até pela sua posição, que faz canto. Qual teria sido o motivo que levou a esta realização? Por um lado, e devido à sua cúpula arabizante, ela teria sido a necessidade de Guilherme mostrar os seus talentos, neste caso específico, ligados à arquitectura árabe com a qual ela entrara em contacto em Marrocos. Por outro lado, tentativa de originalidade e do mesmo modo, ostentação e exibicionismo, porque na realidade desta espécie de "bow-window” não teria nenhum aspecto utilitário.Este baldaquino é sustido por uma coluna e rodeado da balaustrada em pedra. Esta, aparece também nos dois terraços laterais. O terraço da área de serviço, que dá para a Rua Garrett é também sustido por colunas, três colunas muito simples, aproximadas das colunas Toscanas. Existe neste terraço uma pequena fonte ladeada de bancos decorados com pedaços de porcelana de vidro e conchas aglutinados numa espécie de "patch-work”. Encontramos o mesmo trabalho na Fonte da Pipa e viemos a concluir terem ambos sido da autoria do já referido “Espanhol”.
- Interiores
A parte inferior divide-se também em dois andares, dos quais só o 1º tem interesse para o nosso trabalho e por isso apenas deste apresentamos descrição. Entra-se por uma escadaria em pedra, com vinte degraus, de forte inclinação, ladeada por dois corrimões com gradeamento em ferro forjado trabalhado e pintado. Esta entrada não é muito majestosa, o que aliás também acontece com as divisões, que são no geral pouco espaçosas.
No 1º andar existem oito divisões principais. Subidas as escadas, chegamos a um pequeno “hall” cujo tecto é trabalhado com ornatos em estuque em forma de ziguezague.
Este patamar prolonga-se e desemboca numa antecâmara, junto às janelas, do corpo principal. Desta antecâmara partem portas para ambos os lados, sendo o lado esquerdo o único com ornamentação. Assim, a primeira porta à esquerda a um pretensioso salão dividido a meio por um arco que tem ao centro uma vieira estilizada, bem como flores, a decorá-lo. É desta sala que se tem acesso ao baldaquino, o que parece evidente, devido à função de ostentação deste elemento. As paredes desta sala são apaineladas e existem pinturas por cima das janelas.
Continuando pelo corredor, encontramos um sumptuoso quarto de dormir, que tem um arco a dividi-lo; este arco é sustido por duas colunas cujos capitéis são uma imitação dos capitéis corínticos. Os elementos decorativos são substancialmente os mesmos, isto é, conchas, grinaldas de flores, laços de fita, sublinhados a dourado. Existem neste quarto também, duas cabeças de anjos em alto-relevo, cada uma de seu lado do arco. Todos estes elementos nos fazem lembrar o estilo rococó.
Logo a seguir, encontramos um pequeno quarto que mantém as características anteriores, tendo no entanto um elemento inovador — um tondo, com “putti” em alto relevo, o que é uma característica do estilo barroco.
Prosseguindo, encontramos a sala de jantar. Nesta sala, o colorido é bastante diferente dos tons rosa-pastel do resto da casa; aqui as cores são em “degradé” de azuis e verdes. O tecto, muito curioso, tem uma imitação de frisos de madeira e aparecem pinturas alusivas à utilidade da sala, isto é, pinturas de frutos variados.
A única divisão com interesse do lado direito da já referida antecâmara é o antigo escritório do advogado. As características do tecto são semelhantes à maioria das outras divisões de que falámos. O mais significativo deste escritorio é a figura de uma mulher com uma balança que está sobre uma das janelas. Esta figura que se assemelha aos “putti”do quarto das crianças, pretende representar o símbolo da justiça e teria sido copiada de um livro de direito. Mas curiosamente, este símbolo, encontra-se colocado num painel pintado, sendo esta pintura uma paisagem, que não tem, pois, nada a ver com a figura — existe mais uma vez desconexão de ornatos.
Conclusões
A “Vivenda Marília” foi um desafio arquitectónico à sua época. Um desafio que começou por se pôr em termos da população que não acreditava que os ornatos de estuque se mantivessem fixos, assim como à simetria e a um certo gosto tradicional.
Uma casa corresponde sempre à personalidade de quem a construiu e de quem a habita. Esta reflecte perfeitamente um espírito que quis algo de original, de diferente para impressionar os outros.
Assim, que esta habitação seja uma ecletismo, com características neo-clássicas, rococó e arabizastes. Não importava tanto a uniformidade da construção, mas antes de mais uma profusão de ornatos que a evidenciasse. Uma casa eclética também na pretensão de imitação de materiais ricos, com recursos pobres.
Ficamos assim a dever ao génio de uma mulher, um edifício que é a manifestação de pompa e exibição de uma nova-rica em vias de afirmação, mas que é, igualmente, no seu todo, uma criação espectacular, desligando do problema (aliás controverso) do gosto, e que continua a ser um desafio à atenção e sensibilidade do espectador; este, tem também a possibilidade de constatar o perfeito estado de conservação em que a Vivenda Marília se encontra, o que é de louvar, numa época em que se destroem cada vez mais valores de épocas passadas.
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